domingo, 30 de outubro de 2016

Entrevista com Raúl Ruiz


 

por Michel Coulombe


Raúl Ruiz é exceção na paisagem cinematográfica francesa. Exilado desde o golpe de Estado chileno, o cineasta, que filma mais rápido que a sombra, realizou, desde seus começos, nos anos 60, mais de 60 longas-metragens e inúmeros curtas-metragens. Longe, aos 60 anos, de afrouxar o ritmo, conseguiu este ano uma admirável dobradinha ao apresentar, um em seguida do outro, dois filmes em competição em Veneza e em Montreal. Enquanto os cinéfilos que assistiam à Mostra puderam ver Comédia da Inocência, interpretado por Isabelle Huppert e Charles Berling, no Festival des films du Monde descobríamos Combate do Amor em Sonho, drama amoroso mascarado por um emaranhado de histórias, justificado por uma combinatória surpreendente.
Mergulhando o espectador num universo que escapa às convenções realistas a aos códigos cinematográficos tradicionais, Ruiz empresta do Filme de Piratas - ele que se diz convencido de que todo chileno sonhou um dia em ser pirata - tanto quanto do conto de fadas, Hans Christian Andersen, nomeadamente. Aqui ele conjura um bordel de religiosas, bolsas sempre cheias de dinheiro, ou evoca de passagem o poder maléfico da internet. Em torno dos atores Elsa Zylberstein, Lambert Wilson, Melvil Poupaud, Christian Vadim e Marie-France Pisier, o cineasta propõe um filme cerrado, atípico, desconcertante ou intrigante, que encontra notavelmente suas origens num livro que ele estudou na escola, o Libro de Buen Amor, longo poema lírico escrito no século XIV por um cônego espanhol, Juan Ruiz.
Mas, em Raúl Ruiz, que tem prazer em desmontar leituras e interpretações, não há jamais uma verdade apenas. O espectador que se perder poderá sempre se debater com uma certa questão proposta por um dos personagens de Combate de Amor em Sonho: se esta história não quer dizer nada, porque contá-la?

 
Ciné-Bulles: Você filma num ritmo frenético.
Ruiz: E no entanto, tal ritmo me parece completamente normal.
Ciné: Você foi comparado a uma mãe siciliana que teria muitos filhos pois sabe que perderá vários. Logo, você tem essa consciência da fragilidade de seu cinema.
Ruiz: Em certa época, muita gente pensava assim. A grande produção musical italiana encontra sua explicação nesta convicção de que a maior parte do que foi feito vai desaparecer. Alguns de meus filmes desapareceram pois o negativo foi destruído, e deles não resta mais que algumas cópias em vídeo. Os negativos foram queimados por acidente ou por simples mal-entendidos.
Ciné: Esta tomada de consciência não é recente pois você trabalha em tal ritmo desde sempre: você escreveu muitas peças de teatro antes de assinar muitos episódios de séries mexicanas e de filmar numerosos filmes, às vezes até seis num único ano.
Ruiz: Insisto, não é o que você pensa. Não me sinto nem um pouco estressado. Um festival me cansa mais que uma filmagem.
Ciné: No caso de Combate de Amor em Sonho, você escrevia à noite e filmava de dia.
Ruiz: Sim, mas conhecia bem os temas. Eu trabalhava a mecânica, fazia vir as coisas por combinação criando pontos entre os temas, que eram nove, distantes um do outro. O filme está a meio-termo do sonho e ainda assim submetido a uma rígida combinatória. Isto é o que na música se chama de sistema serial. Tal sistema permite a abertura, não se deve tomá-lo de maneira tão rigorosa, pois há o risco do resultado se aparentar a algo da Oulipo. O mecanismo terminaria assim por sobrepujar a matéria e isso dá no vazio. Numa palavra, à força de utilizar a combinatória, é o espírito das Mil e Uma Noites que se instala.
Ciné: Você possui uma abordagem bastante lúdica do cinema.
Ruiz: Como a maioria dos que praticam a arte do cinema.
Ciné: Você crê realmente que os realizadores de grandes produções americanas são animados por tal espírito?
Ruiz: Esses não praticam a arte do cinema, mas uma forma de arte aplicada. Antes deles, antes de todos os cineastas formados nas universidades, os Howard Hawks, os Samuel Fuller davam o jamais visto através do que víamos todos os dias.
Ciné: Porque você se coloca em tal situação extrema de não saber jamais, durante a filmagem, o que te espera no dia seguinte?
Ruiz: Na escola, preparava sempre as lições no último minuto. Este hábito permaneceu. O que é preciso, para filmar como filmo, é estar bem preparado, não especificamente para o filme, mas colecionando as possibilidades. Um pouco como os esportistas que se submetem a longas temporadas de treino para serem capazes de correr em tal ou tal competição onde tudo no fim se passa muito rápido. No cinema, mesmo quando nos preparamos longamente, mesmo quando o roteiro está escrito, muitas decisões se tomam no último minuto. Mesmo no caso dos filmes americanos tão bem planificados, como pude constatar ao seguir de perto algumas filmagens. Eu mesmo realizei um pequeno filme americano, The Golden Boat, e sei bem porque não quero mais filmar assim. O lado industrial não me convém. Pora obter qualquer coisa no sistema americano é preciso ser realizador e produtor ao mesmo tempo, de modo que só se filma de cinco em cinco anos. Neste caso se é, forçosamente, um amador. Há alhures filmes onde todo o mundo é profissional, menos o diretor!
Podemos fazer filmes como um músico cria uma ópera e depois uma sonata. Não há vergonha em compor uma sonata. No cinema pode-se filmar um filme caro e depois um pequeno, o que não muda nada, a sério, a invenção. Quando filmei O Tempo Redescoberto, como temia passar por maus bocados - o que não foi o caso - o produtor, Paulo Branco, me prometeu, em troca, um filme no qual eu seria inteiramente livre, e esse filme foi Combate de Amor em Sonho. Agora, preparamos juntos uma adaptação do último romance de Salman Rushdie, O Chão que Ela Pisa, um projeto bastante pesado, custoso. E desta vez obtive dois filmes livres, o que quer dizer dois filmes que custam juntos no máximo três milhões de francos. Meus filmes não são, no conjunto, sucessos comerciais, mas respeito uma certa lógica econômica. Assim, gasto dois milhões de francos na filmagem se sei que o filme, vendido para tal distribuidor, para tal canal de TV, pode cobrir seus gastos.
Ciné: O que corresponde à lógica de produção, nomeadamente, de Éric Rohmer.
Ruiz: Absolutamente. Logo, é preciso preparar o filme mais livre, mais interessante dentro de tais limites.
Ciné: A você foi necessário encontrar uma família cinematográfica pronta a jogar o jogo, a investitr tempo e talento em seus projetos.
Ruiz: Tenho três. Tendo visto o que aconteceu a Fassbinder, um cineasta com quem cruzava regularmente no mítico festival de Rotterdam, e que me parecia bastante infeliz, escolhi evitar as panelinhas. A gente com quem trabalho não depende portanto de mim.
Ciné: Deve-se entender que você convida tal ou tal ator lhes dizendo, sem mais, que os chama para um filme construido em torno de uma análise combinatória?
Ruiz: Isso mesmo, e ao conversar com os atores o filme toma forma. Durante a filmagem de Combate do Amor em Sonho eu me levantava por volta das quatro horas da manhã para escrever o que filmaríamos dois dias mais tarde. Dez dias antes do fim das filmagens, o roteiro estava completo. Não era preciso senão tapar os buracos. Um pouco como na nouvelle vague: Jacques Rivette trabalha ainda desta forma. No caso de A Sereia do Mississsipi, um filme no entanto bastante roteirizado, François Truffaut distribuia pela manhã as páginas que filmava ao meio-dia. Eu, sou um tanto mais prevenido... Monto o filme com minha esposa em paralelo à filmagem, o que me permite saber exatamente onde estou.
Ciné: Você tem sempre prazer em filmar?
Ruiz: Quando rodei meu filme americano, tive momentos de prazer, mas não o tempo todo. Normalmente, tenho mais prazer... No mais, para não perder a mão, filmo durante uma hora, todos os dias, com uma câmera digital. É necessário, de outra forma é como com o piano, esquece-se.
Ciné: Você vem de filmar em seu país de origem, o Chile.
Ruiz: Filmei dois documentários de uma hora e meia sobre o Chile. Uma visão um tanto subjetiva...
Ciné: Qual é sua relação com o Chile hoje em dia?
Ruiz: Tornou-se mais clara. Estive lá três vezes neste ano. Estou no momento bastante próximo do Chile, como, no mais, de Portugal e da França.
Ciné: Você apresentou também um filme em competição em Veneza, Comédia da Inocência. Estes dois filmes feitos um em seguida do outro possuem uma relação estreita?
Ruiz: Comédia da Inocência, mais inquietante, é o oposto total de Combate do Amor em Sonho. A história é contada do início ao fim contendo todos os elementos. Comédia da Inocência é um filme francês. O roteiro é tirado de um romance. No dia de seu aniversário de sete anos, uma criança declara que gostaria muito de voltar para casa. Ele dá um endereço à sua mãe, que encontra assim uma mulher que perdeu o filho num acidente. Essa criança teria a mesma idade que a sua. Imagino bem o que um americano poderia fazer com tal história. Quanto a mim, opto pelo cartesianismo francês, mas no fim das contas a explicação é mais inexplicável que se tivéssemos optado pelo fantástico e pelo expediente do sobrenatural.
Ciné: Depois de O Tempo Redescoberto, você filma, com Combate de Amor em Sonho, um filme que poderia tão bem se intitular O Tempo Compresso, na medida em que funde passado, presente e futuro, uma forma de contar que associamos naturalmente à América Latina.
Ruiz: Temos o hábito de misturar tudo... Quando se habita tais países fazemos associações que não ocorrem aos europeus. Ainda que hoje em dia, os europeus se abram a tal forma de contar, ao passo que os latino-americanos se tornam mais rígidos.
Ciné: Você vê uma transferência.
Ruiz: Entre a França e a América Latina, certamente. Mais que entre a Espanha e a América Latina. No mais, me sinto muito mais próximo da França que da Espanha, cuja cultura, entretanto, frequento desde a infância. Há qualquer coisa de desagradável, de pesado, de pés-no-chão, no mau sentido do termo, na Espanha. Há um pouco de Franco, um pouco do realismo espanhol, em todo Espanhol.
Ciné: A América Latina tem, também, seus ditadores. Há um pouco de Pinochet em todo chileno?
Ruiz: Pinochet é um caso a parte, diferente dos ditadores latino-americanos que conheceram a alegria, a embriaguez do poder, que possuiram um caráter grotesco. Pinochet está mais pra um pequeno funcionário. É um personagem de Camus. Em L'État de Siége há um personagem chamado Nada, vestido de sub-oficial... Pinochet não vivia no luxo. Ele matava de modo prático. Ele assustava. Três mil mortes no Chile, trinta mil na Argentina, isso é tudo sobre seu minimalismo. O Chile é um país infantilizado que viveu mais o regime dos maus tempos que o do terror. Quando lá retornei após dez anos de exílio, não fui contrariado, mas uma viatura me seguia e, toda noite, sistematicamente, às quatro da madrugada, batiam à porta. Sem mais.
Ciné: Em Combate de Amor em Sonho você demonstra uma fascinação evidente por certos objetos, o anel, a bússola, o espelho ,a lanterna, a esfera, a cruz de malta. Tais objetos possuem com frequência propriedades mágicas.
Ruiz: No fime há nove objetos, nove histórias, mas cada história não corresponde, necessariamente, a um objeto. Pedi a quem se encarregava do cenário e do figurino que me encontrasse objetos, se possivel nove, e assim comecei a trabalher sobre os mesmos. Nove é a cifra da cabala cristã, a renascença tardia, o barroco. Eu os escolhi por razões bastante cinematográficas.
Ciné: O mistério lhe agrada muito.
Ruiz: O trabalho no cinema consiste em filmar coisas completamente cotidianas que se tornam enigmáticas. E mais, o cinema é feito menos de histórias que de silêncios, de vazio. Como amo o mistério, em Combate do Amor em Sonho há um filme escondido. Um jovem, interpretado por Melvil Poupaud, encontra uma jovem numa boate. Eles partem juntos e sofrem um acidente. Em coma, o jovem ouve vozes a seu redor e pouco a pouco constroi qualquer coisa que o permite alcançar a morte. Ao longo de todo o filme, há indícios, sirenes, ruídos do acidente, o lamento de alguém que respira com dificuldade, vozes numa sala de operação. Eis o filme que se esconde por trás da análise combinatória de Combate de Amor em Sonho. Para descobrí-lo é preciso, evidentemente, escutar bem a banda sonora.


(Traduzido por Eduardo Savella)


Original em Francês disponível em http://lecinemaderaoulruiz.com/raoul-ruiz-cineaste/combat-damour-en-songe ou http://www.erudit.org/culture/cb1068900/cb1093117/33647ac.pdf

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