domingo, 9 de outubro de 2016

A Cidade dos Piratas



por Serge Daney



Há filmes sobre os quais não estamos certos se não foram sonhados. Talvez sejam estes os mais belos. Tal qual a nova aventura do capitão Ruiz no país de nossas crenças.


Tome uma criança e se assegure de que sonha. Acorde-a e lhe conte uma história. Embale-a com sua mais bela voz-off. Faça-a insidiosa, não se esqueça da trilha sonora. É preciso que, novamente adormecida, a criança complete sonhando a história que lhe fora insuflada. É preciso que, ao despertar, ela sinta que foi a história que a escolheu, e não o inverso. Uma história imortal, título de um dos últimos filmes de Welles; mas toda história é imortal, dizem todas as de Ruiz. Disto as delícias, depois mais delícias, e aí o terror.


Mas se você não dispõe nem da criança adormecida, nem do tempo em suspensão, nem da voz que embala, nem de talento para improvisar (isto é, a arte de sempre ter a última palavra) não insista e renuncie a imitar Raúl Ruiz. Só ele parece ter guardado o segredo e o gosto para tais coisas. Após o silêncio de Welles e a partida de Buñuel para a Via Láctea, fala-se muito de um retorno do cinema à ficção. Mas muito pouco do retorno da ficção (como se fala do retorno do reprimido ou do retorno de Frankenstein). Os filmes de Ruiz são relatos, e possuem um caráter iniciático. Espiralados, trucados, intrincados ou maléficos, possuem um charme louco. Mesmo se foi preciso esperar dez anos (da queda de Allende, 1973, que exila Ruiz de seu país natal, à estreia, ano passado, de As Três Coroas do Marinheiro) para que um público de repente menos insignificante caia sob tal encanto e marche no compasso dessa loucura.


Isto malgrado a reputação dada a Ruiz de hermetismo e intelectualismo que prova tão-somente que, logo que confrontados a um verdadeiro barroco latino-americano, os franceses têm dificuldade em admitir que sua própria tradição de filmes-labirinto, jogos de quebra-cabeça ou do Ganso, à la Robbe-Grillet ou Resnais, não foi decisiva. Dito isto (e uma vez dito, não diremos mais, está prometido: na próxima, consideraremos Ruiz já conhecido, senão reconhecido) A Cidade dos Piratas, que faz quase um par com Três Coroas de um Marinheiro e que evoca esse filme mais ou menos bem sucedido que foi O Território (três filmes rodados em Portugal) possui sua tonalidade própria, seus truques íntimos, seus sucessos fulgurantes e suas falhas secretas. Em suma: um filme excelente, onírico, perto do inenarrável e de todo consumado.


Por onde começar? Retomemos a metáfora do adormecido. Estamos no Sul, defronte o oceano, sujeitos a todos os paradoxos. Em seu quarto, Isidore está adormecida. Sim, adormecida, pois se trata de uma mulher. Sua mãe, que mal parece mais velha, acorda-a dizendo: "Dormes, Isidore?". "Conta-me uma história", responde a vozinha de criança de Isidore. Sobre uma mesa, ao lado, algum dinheiro deixado pelo pai. Ele abusa de Isidore, vem lhe pagar. Esta cena não dá, evidentemente, alguma ideia dos incontáveis acontecimentos que povoam esta Cidade dos Piratas, mas todo o Ruiz, em certo sentido, nela se encontra. Como Buñuel, Ruiz se compraz com as mais simples permutações lógicas. Perversão de nome e de gênero, de idades e de amores, do antes e do depois. Incesto, relação social tornada jogo de palavras ou "jogo das sete famílias". Além disso, essa "cidade" não é mais que uma ilha, salvo não ter mais que um habitante, que interpreta todos os papéis. Para aqueles que dependem do conforto da identificação (quem é quem?) Ruiz é o menos seguro dos guias. Ele não acredita na identidade, não acredita senão nos mapas (cartes). Arbitrários, de preferência.


Isidore beija um policial de tal forma que a forma vermelha do beijo revela ser aquela da famosa ilha dos piratas. Um homem faz saltar os miolos de tal forma que, ejetados num rio de sangue, desenham a forma da ilha. No começo, nada mais que enigma; no final, nada mais que resíduo. No meio tempo, a bela Isidore conhece um menino, mas este anjinho do mal é um grande criminoso. Ela se torna sua noiva e cúmplice. Ela o segue até a ilha. Ela retornará, sim, mas em que estado! Adivinhamos que a pequena palavra que está mal e deslocada no universo ruiziano é o verbo "ser". É claro que não se ganha nada em querer recontar A Cidade dos Piratas. Está claro que não vemos nada.


Entretanto. Quanto mais nos desencorajamos em identificar aquilo (aqueles) que vemos na tela (até o ponto em que, ao final, gritamos mentalmente "puxa" e nos roça o tédio), mais Ruiz se compraz com a aparência das coisas, o peso material, anedótico, que elas guardam apesar de tudo.


Dois macabeus putrefatos (e ainda mais orgulhosos) tomam um chá Durassiano, um bocejo é filmado do ponto de vista da glote, detalhes carregam a imagem sem razão, uma caveira vira bola de rugby; toda uma ala da pintura espanhola do século XVII, aquela das Vaidades, do Valdes Leal dos Hieróglifos de nossos fins últimos, está prestes a se animar. Sob a pulsão dos vermes (vers).


De todo modo, quanto mais renunciamos saber em que tipo de filme caímos (ao ponto em que, lá pelo meio, cansados e lassos, achamos que já é o bastante) mais Ruiz se distingue em evocar, com felicidade constante, o fantasma dos filmes B americanos, de Cocteau, ou dos filmes da inglesa Hammer. Há um pouco do John Mohune do Moonfleet de Lang no menino de A Cidade dos Piratas, como há um pouco de Tourneur (aquele de A Morta-Viva) no tom alucinado de certas vozes. Como se, para se desculpar da abracadabrância de seu próprio relato, Ruiz o vestisse da memória dos relatos com os quais tivemos tão pouca dificuldade, na infância, em nos sentirmos em casa.


Quanto mais nos convencemos de que a linguagem, também ela, está encurralada, mais Ruiz é capaz de fazer falar os atores com um tom tão doce, e este nada de desolado amuo na voz que torna perturbadoras as mais simples frases. Há poucos cineastas, dos que filmam em "francês", que melhor capturaram a música do "era uma vez..." francês, o lá musical que abre as portas de todas as histórias. Há poucos compositores que, melhor que Arriagada (o cúmplice regular de Ruiz) sabem inventar notas dignas de um Ravel hollywoodiano e irônico. Enfim, quanto mais aceitamos seguir Ruiz em sua folia de autor, mais é preciso nos render à evidência: ele é cada vez mais segura na escolha de seus atores. Em A Cidade dos Piratas, Anne Alvaro (Isidore) e Melvil Poupaud (o menino) são particularmente bons.


Tudo isto, vocês dirão, tem um nome. Sim: sedução. Mas é a forma que seduz. Resta o fundo. Ruiz não é um esteta oco. Há um sentido em suas histórias, que creio terrível. Um fundo de imundície e promiscuidade que nenhuma poesia poderia silenciar por completo. Os cineastas - já dizia eu no começo (por provocação) - perderam quase todos o senso do relato. Mais ainda, o único que o conservou intacto (Ruiz) realizou sua loucura pessoal. O espectador "cartesiano demais" estará menos desamparado frente um filme como A Cidade dos Piratas se se dignar a ver As Três Coroas do Marinheiro (que passa ainda, numa sala apenas, em Paris). Neste filme, Ruiz expõe em que condições uma história pode se tornar imortal. Ele precisava de carne fresca. Aquela daquele que a contará como se acreditasse que ela não existisse senão para ele. Aquela daquele a quem foi contada e que pensa (erroneamente) que ela não o alcançará jamais. Tornada imortal, a história não cessa de retornar. Em A Cidade dos piratas, numa primeira vez como filme de aventura, numa segunda como teatro Cocteausante, numa terceira como seminário teológico, numa quarta como colóquio entre mortos.


Viver, é sonhar uma história; morrer é contá-la. Resta a eternidade para apodrecer.


Serge Daney (Libération, 25 de fevereiro de 1984)

Traduzido por Eduardo Savella

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